Confesso que tenho por hábito não perder nada do que António
Guerreiro escreve no Atual do Expresso e, que me lembre, as minhas
expectativas nunca saíram defraudadas.
Na última edição do jornal, escreve um longo artigo em que
analisa os exames do 12º ano, a que deu o título “Os exames e a comédia do
rigor”.
É um texto que merece ser lido por todos, os que estão no
sistema de ensino e os que estão de fora mas que gostam de opinar sobre o que
não conhecem.
Como declaração de interesses, esclareço que nunca fui
professora, mas a maior parte dos meus amigos são-no, ou foram.
Também nunca esqueço os professores que marcaram
positivamente a minha vida, e foi com grande mágoa que vi Maria de Lourdes
Rodrigues começar a destruir a dignidade de toda uma classe fundamental para o
futuro do país, transformando os professores em burocratas stressados e
indisponíveis para a cultura e investigação na sua área de trabalho.
Para entender o que vale hoje um professor para o Ministério
da Educação, atrevo-me a publicar um (longo) excerto do artigo de António
Guerreiro.
Lamento profundamente que tenhamos chegado aqui, mas o que
vai escrito é tão exacto quanto indigno:
“Chegados a este ponto, seria altura de entrar num longo capítulo de descrição
do que tem acontecido à mais desventurada e vilipendiada classe profissional: a
dos professores. Resumindo bastante uma longa história, podemos dizer que os
professores estão desde há bastante tempo sujeitos a estas duas regras que não
passam de alíneas nos tratados de domesticação: fazer com que a sua
legitimidade não tenha uma fonte mais elevada - por exemplo, o saber, algo que
não move nem comove a escola atual - do que a dos próprios gestores do ministério;
fazer com que eles não acedam a nenhuma espécie de autonomia. Deste modo, se
outrora o tempo de trabalho do professor se dividia entre o tempo controlado e
o tempo autónomo, hoje todo o seu tempo de trabalho é controlado (à hora,
aliás). A única autoridade que conta hoje na escola é de ordem administrativa.
Para perceber isto em toda a sua dimensão (que é a dimensão grotesca da
caricatura), basta ler as "normas relativas aos professores
vigilantes".
Aí, em quatro páginas de normas, algumas delas insultuosas, fabrica-se
o professor como um suspeito, um indivíduo propenso ao crime que é preciso
vigiar (ficando assim no lugar do vigilante vigiado), de tal modo que justifica
o uso de uma severa linguagem normativa, cheia de proibições (e até incitando,
num determinado caso, a que seja policiado), onde é fácil descobrir um
paradigma criminológico.
Depois de identificarmos a parte mais visível da máquina implacável
que, em todos os domínios, destituiu a autonomia dos professores e os fez
entrar numa mecânica da subordinação, poderíamos pensar que lhes resta ainda o
poder autónomo que advém da tarefa da correção dos exames.
Nada mais falso. Os critérios de correção, lavrados em verdadeiros tratados
(os critérios de correção têm mais páginas do que o enunciado do exame),
fundam-se numa ciência para a qual não temas nome parque trata de hipóteses e
de "cenários de resposta". Eles preveem tudo - todos os desvios,
todas as incorreções, todas as imperfeições e incompletudes das respostas dos
alunos - e para tudo o que preveem têm uma quantificação.
Se, ainda assim, o professor, presumindo-se um avaliador competente,
quiser operar um pequeno desvio e introduzir o seu critério de quantificação, lago
saberá que a grelha Excel onde vai lançando a pontuação das respostas só aceita
os números previstos pela ciência que projeta "cenários de resposta".
No fim de todos os mecanismos de vigilância por que passou, há uma
grelha Excel que lhe diz que ele não é nada e nunca será nada.”
António Guerreiro, Atual, 14/07/2012