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20 de novembro de 2025

Transcrito, por mim, com vénia

 Mr. Ronaldo goes to Washington 

por Daniel Oliveira, Expresso 20 Nov. 2025


Que Ronaldo é um dos melhores jogadores da história do futebol mundial nem merece discussão. Mas a sua fama, aos 40 anos, já pouco tem a ver com o que faz dentro das quatro linhas. Resulta de ter ascendido ao estatuto de celebridade global num tempo em que o mediatismo vale por si próprio e a influência se mede em seguidores. Com mais de mil milhões somados no Instagram e no Facebook, detentor da maior conta planetária em qualquer destas plataformas, a sua notoriedade há muito que extravasou o futebol. Deixou de ser “apenas” um atleta. Cristiano é uma marca planetária, com lógica própria, indiferente às fronteiras e à política, como todas as marcas.

É por isto que os 230 milhões que recebe anualmente do Fundo Público da Arábia Saudita não compram os golos pelo Al Nassr, mas a normalização internacional de uma teocracia torcionária. E Ronaldo tem desempenhado com zelo a sua função. Peça central na operação que ajudou Riade a assegurar o Mundial de 2034, e defensor sistemático do país, deu agora o salto simbólico que faltava, ao acompanhar o príncipe regente numa mais que polémica visita à Casa Branca.

Roberto Martínez apressou-se a justificar a presença do capitão da seleção — o mesmo que, dois dias antes, não tinha marcado presença no jogo decisivo da qualificação para o mundial — dizendo que Ronaldo é embaixador de Portugal”e que representa o país “esteja onde estiver”. O que parece ter-lhe escapado é que CR7 viajou até aos EUA com passaporte diplomático saudita. Embaixador, sim, mas do regime para quem trabalha como o relações-públicas mais famoso do planeta.

Não é por acaso que a visita da comitiva saudita à Casa Branca gerou tanta atenção e polémica. Há um contexto, lamentável, que precede a reverência confrangedora com que Mohammed bin Salman foi recebido em Washington. Afinal, estamos a falar do homem que os serviços secretos norte-americanos identificam como responsável pelo assassinato e esquartejamento de um colunista do Washington Post no consulado saudita de Istambul em 2018. O ultraje internacional afastou-o, durante todos estes anos, dos EUA, mas esta semana teve direito a tudo o que a liturgia presidencial pode oferecer. Tapete vermelho, F-16 a sobrevoar a Casa Branca, sorrisos e palmadas cúmplices, um discurso engrandecedor de Trump. Uma receção que contrasta de forma quase obscena com a frieza que a administração norte-americana tem reservado à maioria dos líderes democráticos.

Um par de horas antes de Ronaldo ser filmado na galhofa com Trump, o presidente dos EUA abriu a Sala Oval à imprensa. Sentado na mesma poltrona onde Zelensky foi humilhado por Trump, Mohammed bin Salman foi defendido por Trump de todas as formas e feitios. “Há coisas que acontecem”, disse a propósito do assassinato do jornalista, mais ainda tratando-se de alguém de quem “muitas pessoas não gostavam”.

Tudo tem um preço e Trump é o primeiro a enviá-lo por escrito. Só no último ano, a sua família recebeu 20 milhões de dólares em licenças para empreendimentos imobiliários “privados” sauditas usarem o nome Trump. E muito mais, de criptomoedas a negócios imobiliários, está em negociação e a caminho. A contrapartida desta corrupção absolutamente descarada e à vista de todos mede-se em “pequenas” coisas como o acesso aos F-35 que a Arábia Saudita comprou esta semana, contra o parecer do Pentágono, que considera um perigo ceder a mais avançada tecnologia militar americana a um regime que mantém uma parceria militar com a China.

Embora costume estar reservado à celebração de eventos desportivos, está longe se ser a primeira vez que um desportista visita a Casa Branca, e também não é de esperar que Ronaldo seja um ativista político ou mesmo uma voz pelos direitos cívicos. Ninguém lhe pede que seja Mandela. Só se esperava que não se comportasse como um ativo de um regime repressivo como poucos, ou que não fosse uma das cabeças de cartaz de uma das cerimónias mais lamentáveis numa administração onde tudo é lamentável.

Como portugueses, poderíamos esperar que o capitão da nossa seleção não emprestasse o seu rosto à legitimação de um dos regimes mais retrógrados e repressivos do planeta. Que não se deixasse usar para lavar a imagem de quem prende dissidentes, silencia mulheres e manda matar jornalistas. André Ventura, claro, lá veio em defesa de Cristiano Ronaldo, porque é capaz de render mais uns votos. Como resumiu Sérgio Duarte no X, “os islamofóbicos fizeram uma pausa para defender a honra do relações-públicas da Arábia Saudita.”

Ronaldo é uma marca antes de ser um desportista. E as marcas não têm ética, pátria ou lealdade. Têm contratos. O erro não está apenas nele. Está em quem insiste em fingir que a marca Ronaldo representa Portugal, quando representa apenas o mercado que lhe pagar mais. É por isso que está onde está a cumprir o papel que cumpre. E foi como tal que foi a Washington.