
Assim que se
chega ao Saara, seja pela primeira ou pela décima vez, atenta-se na
imobilidade. Um silêncio incrível, absoluto, prevalece fora das povoações; e
dentro destas, mesmo em locais de azáfama, como os mercados, há nos ares uma
qualidade de silencioso recato, como se a pacatez fosse uma força consciente
que, ressentindo-se da intrusão do som, minimizasse e dispersasse o som de
imediato.
Seguidamente
há o céu, comparado com o qual todos os outros céus parecem esforços de
corações débeis. Sólido e luminoso, ele é sempre o ponto focal da paisagem.
Ao
crepúsculo, a sombra precisa, encurvada, da Terra ergue-se para ele rapidamente
no horizonte, dividindo-o em secção luminosa e secção escura.
Quando toda
a luz do dia já desapareceu e o espaço está pejado de estrelas, ele continua a
ser dum azul intenso e ardoroso, mais escuro directamente por cima e
empalidecendo em relação à Terra, pelo que a noite realmente nunca se torna
escura.
Deixa-se o
portão do forte ou da povoação para trás, passa-se pelos camelos deitados cá
fora, sobe-se ao alto das dunas, ou sai-se para a planície dura e pedregosa e
fica-se algum tempo em pé, a sós.
Daí a pouco,
ou se estremece e se regressa a correr para dentro das muralhas, ou se continua
ali em pé e se permite que nos aconteça algo de muito peculiar, algo que toda a
gente que aqui vive já sofreu, e ao qual os franceses chamam le baptême de la solitude. É uma sensação única, e nada tem a ver com a
solidão, pois a solidão pressupõe memória. Aqui, nesta paisagem inteiramente
mineral iluminada por estrelas que parecem clarões, até a memória desaparece;
nada resta a não ser a nossa própria respiração e o som do bater do nosso
coração. Um estranho, e indubitavelmente agradável, processo de reintegração
começa dentro de nós, e temos a opção de lutar contra ele, e de insistir em
permanecer a pessoa que sempre fomos, ou de o deixar seguir o seu curso. Pois
ninguém que haja ficado no Saara durante algum tempo é exactamente o mesmo que
quando ali chegou.
“Baptismo de Solidão” em Viagens
Quetzal Editores, 2013