sexta-feira, dezembro 23, 2011

Faz de conta que é um conto

Natalino não era isento de defeitos, mas também não era um homem sem qualidades.
Era banal.
Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem novo nem velho, nem bonito nem feio. Tinha família, trabalho, um T2 acanhado, uma gabardina para os dias de chuva, um blusão para os dias amenos, um bigode aparado ao domingo, uns sapatos para a semana e outros para os dias santos.
Português típico, portanto, porque tinha dois pares de sapatos podendo e devendo ter só um.
Funcionário sem rasgos, sem angústias, sem paixões, amava pai e mãe, mulher e filhos com amor comedido, nem grande nem pequeno, nem quente nem frio. Banal amor parental que, nem muitas nem poucas vezes, o levava a desejar ser sozinho, livre, sem compromissos nem dependências penduradas na aba do casaco. O pior era o jantar, raio, quem é que depois lhe faria o jantar?

Em sonhos voava baixinho; só um deles o fazia voar longe e alto como um grou – o que eu gostava de ver uma aurora boreal, o maior espectáculo do mundo.
Sonhou no sono, sonhou na vigília, e até estranhou tão estranho e persistente sonho.
Achava, puro engano, que nunca tinha vivido acima das suas possibilidades e ponderou seriamente fazê-lo por uma vez.

P’ro Alasca e em força, Natalino, gritou calado na Portela num dia de Outono, cego com sol baixo do sul.
Na viagem, entre pratos e copos de plástico, a perna do vizinho e o jornal desfeito, dava palmadinhas na barriga, satisfeito, antevendo a enormidade do espaço, do tempo e da liberdade. Tudo seu.

Quando a tão esperada noite limpa chegou, com luzes de todas as cores voando-lhe sobre a cabeça, no meio dum encantamento pueril, perguntou gritando - Digam lá se não é mesmo o maior espectáculo que já viram?!
Ali não havia montanha, nem eco; apenas o mais imaculado e eloquente silêncio que já ouvira. De súbito, sentiu que aquele espaço, tempo e liberdade talvez fossem, afinal, demasiado grandes e agrestes. Pela primeira vez, sentiu frio, um frio às avessas, que vinha de dentro para fora.

Na viagem de regresso, já sem palmadinhas na barriga nem jornal desfeito, mas ainda com a perna do vizinho, os grafos que não espetam e as facas que não cortam, lembrou-se dum escritor esquisito. Quando o leu, há muito tempo, pensou, “mariquices”, mas afinal o esquisito talvez tivesse razão.
Quem era o homem e que é ele dizia mesmo, Natalino? Agora não me lembro mas com tanta lonjura tenho tempo de me lembrar.

Ao acordar, torcido, seco, e cheio de dores pela espinha toda, senhora hospedeira, por favor, um copinho de água, ah! já sei, era o tal Beckett que dizia A estrada é longa quando viajamos sós.”
Vamos lá, senhor comandante, prego a fundo, estou cansado, o vento está de feição e daqui a pouco é Natal.

1 comentário:

  1. Tão bonito. E só hoje li! Mas dizem que o Natal é quando o Homem quiser...
    Obrigada tia

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